“Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70% de água e um monte de outros materiais que nos compõem. E nós criamos essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo, num convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade com a qual se identificam, agindo no mundo à nossa disposição, pegando o que a gente quiser.”
Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo
Esta exposição apresenta um recorte de trabalhos recentes da artista carioca Mercedes Lachmann, com esculturas, objetos e vídeos, nos quais ela estabelece uma relação de interesse e intimidade com a natureza. Em sua pesquisa, procura compreender os mecanismos inteligentes das florestas, as formas de comunicação e de relacionamento das plantas, até se aproximar do legado medicinal dos povos originários, estudando as funções curativas para o espírito e a saúde, e o entendimento simbólico desses elementos. A partir desse arcabouço inicial, Mercedes elabora poeticamente seu laboratório de alquimia vegetal, baseando-se na transmutação da matéria e no trabalho com elementos brutos e vivos.
Na obra ” Campo de Força_2 “, a artista apresenta ampolas e esferas herméticas de vidro, de formato e tamanhos variados, que contém ervas embebidas em líquidos. As ervas foram selecionadas de acordo com seu potencial medicinal, num exercício de contenção do tempo e do saber, tanto para preservar a natureza e o conhecimento ancestral, como para estancar o processo da ação do tempo sob a natureza, criando assim um receptáculo para esses conhecimentos ancestrais. Nessa mesma direção, o vídeo “Coleta” documenta a artista recolhendo água no Rio Bonito, em Vale das Cruzes, Mauá (RJ), armazenada em vidros.
Já na obra “Arraste”, troncos de árvores caídas são unidos ao vidro. Os troncos, cujo destino seria a decomposição, são levados ao contato direto com o vidro ainda fluido, que queima a madeira com a qual entra em contato e se derrete por ela absorvendo sua forma. A artista cria esculturas únicas, que surgem de uma espécie de transmutação, quando o fogo une os materiais, e inaugura algo novo.
Dando sequência aos trabalhos ligados a alguma espécie sutil de preservação, a artista apresenta ainda “Quimera vegetal”, com folhas de palmeira, que passam por vários processos de limpeza, secagem, tratamentos, tingimento em branco ou preto, ou mesmo a transformação em bronze, para criar esculturas que flutuam na parede. Partindo do elemento natural são trabalhadas com outras cores, desvinculando-as de seu lugar de origem, dando a elas uma nova força e convidando a uma nova percepção. Num exercício de supressão da natureza e do tempo, Mercedes Lachmann procura pausar processos que seriam naturais com procedimentos antinaturais, para cristalizar um momento e criar um universo de contenção e preservação. Como um manifesto artístico em favor das florestas, e do conhecimento cultivado em torno delas, surgem obras simbólicas que partem do meio ambiente, do fluxo de nascimento e morte, trazendo toda força natural.
Assim como as ilustrações botânicas das primeiras expedições exploratórias registraram a flora brasileira, Mercedes retrabalha uma espécie de catalogação metonímica, onde um único elemento, seja fruto, tronco ou folha, traz a natureza plena para seu trabalho. Ao inseri-la num universo de contenção e pesquisa laboratorial, oferece um convite que vai ao encontro das palavras precisas de Ailton Krenak: “Esse contato com outra possibilidade implica escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como ‘natureza’, mas que por alguma razão ainda se confunde com ela”.
Rodrigo Villela