Um diálogo entre a artista Graziela Guardino e o curador Marc Pottier
Não é arte figurativa. A obra de Graziela Guardino situa-se entre a ‘tapeçaria’ e a escultura, não representa nada, mas de fato representa algo maior: uma emoção. A artista que não quer ser delimitada a nenhuma categoria, mostra uma obra que não se apega a nenhuma referência, mas que oferece um “transporte”, uma sensação, e porque não, um desconforto. A nova exposição na galeria ARTEFORMATTO em São Paulo em agosto de 2021 convida você para este encontro.
A experiência acima de tudo
Nutrida por diferentes culturas, a brasileira (nasceu em São Paulo), a norte-americana (estudou em Nova York), a ‘chinesa’ (morou três anos em Hong Kong) e ainda a australiana (mora no país há cerca de 15 anos), Graziela acredita que nenhuma delas tem uma influência direta em sua obra, e acredita apenas nas suas experiências pessoais. Na verdade, foi em Nova Iorque, em 2007, que em contato estreito com o mundo dos museus, sentiu a “necessidade” de “retornar as artes” e de gradualmente deixar de lado o seu trabalho de produtora de eventos, após ter estudado numa faculdade de comunicação visual.
“Eu vejo minha obra muito ligada aos meus sentimentos, às circunstâncias da vida, aos sentimentos das outras pessoas, mais do que aos lugares” afirma a artista. Na sua obra não há lugar para demonstração, ou lamento inadequado; apenas um jogo de desconstruções e reconstruções que nos convida a pensar metaforicamente sobre a fragilidade da vida. Ela apenas expressou sua dor mais diretamente em uma tese do mestrado em pesquisa sobre “In the Shadow of Loss” com uma base teórica a partir de Freud (1856-1939) e Marcel Proust (1871-1922), onde ela escreveu sobre “as memórias ativadas através de movimentos repetitivos, lembranças e perda.”
Entre a desconstrução e a reconstrução, um trabalho de resiliência
“O meu trabalho se baseia na minha experiência pessoal de perda e da fragilidade que isso traz. O ser humano é frágil, a vida é efêmera. Nós seguimos vivendo, tentando criar um equilíbrio. Erramos, destruímos relações, perdemos quem amamos, mas no dia seguinte seguimos reconstruindo. As minhas obras são uma exploração visual dessas noções de ausência e de vulnerabilidade. Eu tento passar nas obras, de uma forma bem sutil, esse balanço” explica Graziela.
“As desconstruções são “tímidas”, sutis. O uso da madeira, do latão ou de algum material que possa contrastar de uma forma sensível com os tecidos desfiados me interessa. É como se uma pintura estivesse se rompendo, “falling apart” e a estrutura da tela ou do latão estivesse lá para segurá-la. Quando penso nas minhas composições, penso em passar a ideia de que com o suporte estamos bem, mas que em um segundo tudo pode se desmoronar. As composições são intuitivas. Eu geralmente tenho um plano, alguns rascunhos para poder programar os materiais e quantos fios serão puxados etc…, mas após essa programação o processo é intuitivo. Eu gosto que o contraste seja leve, não é nada escancarado. Eu quero que o observador tente entender por que um pedaço da moldura é coberto e o outro não, por que existe tela em um lado e no outro os fios estão caindo? O que eu quero passar com isso? Se você não parar pra olhar, ler o título, você pode apenas achar que é um trabalho manual de tecelagem, formas e cores, mas o conceito não é esse, por isso acho importante falar do processo, pra entender a obra.”
Quase tudo é dito nesses comentários da artista, que acredita piamente na resiliência, dessa capacidade que o Homem tem de se recuperar, de resistir e renascer de seu sofrimento, como tão bem descreveu o famoso psiquiatra e neurologista francês Boris Cyrulnik (1937-).
A pintura e a escultura revisitadas
Com uma paleta restrita, as composições de Graziela Guardino se aventuram principalmente com o tridimensional, articulando diferentes técnicas. Tecido, linho, poliéster, organza… são onipresentes e as propriedades desses meios são exploradas sem estabelecer limites. A moldura que habitualmente suporta as telas das pinturas torna-se um pretexto e um dos elementos dessas “esculturas” imaginadas pela artista. A tela, os tecidos ou os fios que se entrelaçam atrás ou na frente dos chassis que os suportam, transbordam, convocando para uma composição complexa, que joga com verticalidades e horizontalidades. Às vezes, certas composições de fios, de dimensões decididamente maiores, em uma obra que costuma permanecer em tamanhos intimistas, lembram ondas que se penduram em paredes perpendicularmente opostas, parecendo ter se libertado dos chassis e molduras.
A relação com a pintura, sempre monocromática, é parte integrante do processo criativo. A leveza e a aparente fragilidade das linhas dos fios opõem-se à rigidez dos chassis, despidos dos tecidos e telas pintados, mas parcialmente recobertos por cores monocromáticas, muitas vezes luminosas. Como acabamos de ver, essa dualidade assim exposta, materializa para a artista aquela da vida humana, a coexistência de opostos tentando falar sobre ausência e presença, fragilidade e, resiliência.
Os materiais usados foram escolhidos por suas qualidades transformadoras. Através do seu processo de experimentação, onde a artista desconstrói, corta, pinta, puxa os fios, formas simétricas e assimétricas são criadas e justapostas para evocar uma sensação de espaço, volume e distância. Ela justapõe ideias de realidade e ilusão, de fragilidade e força, bem como de ausência e presença.
Os elementos encontrados nas obras são criados precisamente para oferecer ao espectador uma sensação de coexistência e interação de opostos. Ao desconstruir e reconstruir, o jogo de camadas e materiais torna-se um processo de reflexão para demonstrar como elementos opostos podem repousar uns sobre os outros para que uma composição complexa possa existir.
“Não me vejo como uma artista têxtil”
Mesmo que os têxteis estejam onipresentes nas obras de Graziela Guardino hoje, não devemos de maneira alguma a associar aos chamados artistas “têxteis”. Ela nos diz isso categoricamente: “Não me vejo como uma artista têxtil. Na verdade, eu prefiro não me colocar em nenhum box. Não tenho formação em tecidos e pra falar a verdade não conheço as técnicas. A minha técnica é o oposto da tecelagem. É uma destruição e desconstrução dos materiais. Um pedaço de tecido, ou tela, qualquer coisa que se possa desconstruir. Puxo fio por fio e depois de puxados, os fios são pintados. Os fios são pintados por dois motivos, o primeiro por “archival reasons” e segundo para conseguir uma textura mais firme que me possibilite criar formas esculturais e ter um caimento diferente do tecido.”
A nuance só surge, ligeiramente, quando se insiste no assunto: “Talvez por ter passado muito tempo indoors durante a minha infância em São Paulo, nas férias, eu tenha desenvolvido um amor por atividades como costura, desenho, pintura. Mexer com os tecidos era a minha diversão. Eu não era uma criança que vivia muito outdoor.” Deu para entender. Os têxteis são apenas um dos meios que ela usa no momento.
Uma certa distância
A obra fica sempre distante no sentido de que o espectador não é chamado a tocar. Ele só pode olhar. “O público não é convidado a tocar nas obras que são colocadas nas paredes (pinturas). O tátil e a ideia de que o observador quer chegar perto e tocar para sentir e entender o material me agrada, chega ser uma provocação, mas as obras não são interativas e a distância nesse caso é pensada. Para a minha exposição na ARTEFORMATTO, eu criei uma instalação que idealmente será pendurada no teto e as pessoas possam caminhar entre os fios e tocá-los, acho que essa imersão dentro do trabalho pode ser interessante no caso da instalação.” especifica a artista.
A poesia como porta de entrada
Os títulos das obras são um dos elementos fundamentais. Uma das marcas registradas do trabalho de Graziela é sua conexão fundamental com a poesia. “A minha pesquisa parte da poesia para depois se materializar em ideias mais abstratas. Quando eu leio um poema, a obra nasce com ele. Eu quero representar o que eu li e o que eu senti através das obras. Os meus preferidos são os que falam de dualidades da vida e tentam criar um balanço. Os títulos também são uma forma de aproximar o espectador, pois as minhas ideias são colocadas de uma forma muito sútil e abstrata nas obras. Tenho vários poetas favoritos, mas talvez o que eu prefira seja Rainer Maria Rilke.” Para Graziela Guardino muitos outros autores a marcaram, como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e seus versos livres ou Vinicius de Morais (1913-1980), sem dúvida na fase mística desse eterno adolescente. O foco intenso nos estados de espírito, na introspecção, nas emoções mais profundas e na solidão interna de Clarice Lispector (1920-1977) a comovem, assim como a obra de Robert Frost (1874-1963) que, escolhendo temas aparentemente concretos e quase simplistas, procurou trazer à tona a complexidade e a mística do mundo.
Como ela indicou, Rainer Maria Rilke tem um lugar especial em seu coração. Como o poeta, ela quer ser insubstancial, humilde, despojada até a transparência. Sem dúvida ela nasceu para transmitir e saber ouvir essas mensagens secretas que as antenas de seu talento lhe permitem captar: presa em seu corpo de uma mulher que escuta, em um navio naufragando, e mantém custe o que custar, o contato neste posto de transmissão misterioso, localizado no centro dos sonhos. Do fundo de tanta solidão, as obras de Rilke e Graziela, como os mistérios que procuram desvendar, são fruto do respeito como mote, da paciência como arte de viver e de saber esperar os homens sábios.
Um de seus poemas favoritos, “Entardecer” de Rainer Maria Rilke:
O anoitecer enverga lentamente as vestes
que um renque de velhas árvores lhe sustém;
tu olhas: e de ti separam-se as terras,
uma que sobe ao céu e outra que se despenha;
e deixam-te, a ti que a nenhuma pertences,
nem tão escuro como a casa silenciosa
nem tão seguro evocando a eternidade
como a que todas as noites se torna astro e ascende –
e deixam-te (indizível de desenredar)
a tua vida inquieta, imensa e amadurecendo,
para que, ora confinada, ora compreensiva,
em ti se torne ora pedra ora estrela.
Afinidades especiais
Graziela não copia, nem se inspira em outras pessoas, mas cita suas afinidades, que nos ajudam a entendê-la melhor. Quase poderíamos ter dito por ela, o quanto ela tem pontos em comum com a artista americana, nascida na Alemanha, Eva Hesse (1936-1970). Hesse pertencia ao movimento “anti-forma”, que enfatiza o lado “não fixo” da criação, na qual ela se sentia evoluir ao longo do tempo e no espaço em que as obras eram expostas. Ela também está associada à tendência pós-minimalista (obras de arte pós-minimalistas são geralmente objetos do cotidiano feitos de materiais simples e às vezes adotando uma estética pura e formalista) anti-forma que faz Graziela dizer que o que ela aprecia na Eva Hesse, é “o uso de materiais diferentes, testando os limites e a forma com a qual ela expandiu as ideias tradicionais do que uma pintura poderia ser.”
Uma outra afinidade é com a Louise Bourgeois (1911-2010), que nunca deixou de renovar a sua linguagem artística obedecendo sempre a uma lógica subjetiva, baseada na emoção, na memória, na reativação das memórias da infância. Graziela também cita o artista mexicano Gabriel Orozco (1962-), um artista do mundo sem ateliê fixo, cuja maioria das obras se inspiram em suas viagens e para quem o tema do deslocamento é, portanto, fundamental. Ela pensa que “Ambos abordaram a fragilidade da natureza humana usando materiais simples de uma forma poética. Os trabalhos de Bourgeois eram inspirados na sua vida pessoal, medo, raiva e solidão, mesmo o trabalho sendo muito pessoal ele abrange a misteriosa natureza da nossa existência. Gabriel Orozco também investiga os materiais e a existência humana. A frágil relação entre simples objetos. Isso me interessa.”
As cores
“Eu estudei a teoria das cores por três anos no meu primeiro mestrado, por conta disso, imaginei que as cores estariam bem presentes no meu trabalho, mas por algum motivo elas começaram a criar uma certa distração. Nos últimos anos eu tenho trabalhado muito com monocromia, principalmente o preto. Para essa minha primeira exposição em São Paulo com a ARTEFORMATTO eu introduzi outras cores como amarelo, verde, vermelho, mas sempre trabalhos monocromáticos. Usando a monocromia eu consigo focar mais no material, na textura do tecido, na aplicação da tinta na tela, no processo.” Explica Graziela que cria suas próprias cores, o preto que poderia evocar o de Manet, o verde Celadon, o amarelo açafrão-sol, o branco brilhante, e um vermelho ‘de guloseima’ que dá um certo despertar às suas desconstruções.
Suas pesquisas sobre a experiência levaram Graziela a uma obra que quer transmitir as vezes beleza ou tristeza. Mas, em uma ressonância emocional, ela tenta reconciliar dor e solidão, e criar um trabalho que leva à cura para ela e para o público.
O silêncio
“O meu uso de cores monocromáticas vem dessa ideia de trazer o silêncio. Eu não necessariamente tiro a narrativa, mas as cores monocromáticas me trazem um certo silêncio necessário para que eu não me distraia muito com as cores” ela nos diz, convidando você a aproveitar a contemplação para meditar melhor. Mas sobre que silêncio ela quer falar conosco? Qual é o seu “silêncio eloquente”? Qual é o nome da ausência? É um silêncio de duas faces? O seu silêncio é um convite para descobrir o nosso? Numa artista que se banha na poesia, imaginamos que ela invoca inconscientemente Mallarmé (1842-1898) e Apollinaire (1880-1918), para quem os espaços em branco, depositados de forma inusitada, criam em torno de palavras rarefeitas (rodeadas de vazio, de silêncio) um espaço onde elas podem ressoar poeticamente, ou seja, livres de suas referências.
Dobras e lençois brincando de esconde-esconde com a tinta
Em algumas de suas desconstruções aparecem dobras que evocam “Achrome”, uma série de obras do artista milanês, campeão da arte conceitual, Piero Manzoni (1933-1963), centradas no estudo da ausência de cor. Graziela quis enfatizar aqui pela ausência de cores, que o infinito é estritamente monocromático, mas ao mesmo tempo tentando criar efeitos particulares com as superfícies. Ela trabalha mais com matéria do que com cor. A tela deixa de ser o suporte que queremos fazer desaparecer em favor da pintura, mas, ao contrário, passa a ser a própria essência da obra.
Mas, com ela, o contrário também pode ser verdadeiro e outras vezes ela pode cobrir os tecidos com tinta, sempre de forma monocromática. Nesses casos, suas obras incorporam o encontro entre tela, escultura e pintura. Mas, novamente, Graziela nos coloca frente a frente com suas desconstruções que estão na base de sua obra: “A ideia das dobras/pleats veio mais como uma forma de manipular e modificar o tecido/canvas. Com os pleats eu consigo criar uma estrutura mais pesada, que cria um equilíbrio com os fios mais delicados pelos quais a luz geralmente atravessa na outra metade.”
Suas metáforas são sutis. O público pode até deixar de perceber essa dimensão. Graziela procura “absorver” o espectador, mostrando uma relação obra/espectador na qual questiona a possível intervenção deste na obra susceptível de o fazer aproximar dela? O ato perceptivo às vezes leva a apreender certas obras de uma forma muito diferente daquela que o artista havia proposto ao concebê-las. Nesse jogo de esconde-esconde, sem conhecer os meandros e os resultados, como vivenciar as imagens de poemas que nos são oferecidos por Graziela?
La nuit n’est jamais complète.
Il y a toujours, puisque je le dis,
Puisque je l’affirme,
Au bout du chagrin
Une fenêtre ouverte,
Une fenêtre éclairée,
Il y a toujours un rêve qui veille,
Désir à combler, Faim à satisfaire,
Un cœur généreux,
Une main tendue, une main ouverte,
Des yeux attentifs,
Une vie, la vie à se partager.
« La nuit n’est jamais complète » do Paul Eluard mostra a janela aberta que surge à distância. Sem dúvida, Graziela já a percebeu. E ela, que nunca quis ficar presa a nenhum “ismo”, em um único processo artístico, poderá vir a transformar ainda mais suas desconstruções utilizando outros materiais, com outras dimensões? Mas, isso é uma outra história, e quem sabe, uma outra exposição.